Ler ficção durante a adolescência deu-me estrutura para a imaginação. Alexandre Dumas foi-me um pai. Sou sua filha póstuma (uma entre milhões, imagino). Ensinou-me muito sobre a complexidade do indivíduo e suas lutas; os cacos que formam o ser, colados com a argamassa dos afetos. Ensinou-me que os lados políticos são pouco mais do que palavras e que as verdadeiras revoluções se fazem no silêncio de cada pessoa e na intimidade das relações. Escrevendo novelas para vender nos periódicos de Paris, histórias cheias de peripécias inverosímeis, ele deu-me uma estrutura mental para que a minha vida interior não fosse uma travessia solitária marcada de absurdos. Ainda hoje não sei se o que vejo é a realidade ou a imagem coada pela lente que ele, morto há muito mais de cem anos, deixou ao mundo. O maravilhamento. Também Hans Christian Andersen, com a sua Sereiazinha desfeita em espuma por amar o que lhe era inacessível, mo ofereceu. É verdade que esse maravilhamento é o trinco com que abro as janelas do meu lugar. Claro que o mar não é belo, mas a maravilha de o sentir assim, cheio de beleza e de mistério, é que me abre as comportas do ser para estar com ele.
Genericamente, temos uma relação incómoda com a ficção. Sorrimos timidamente e dizemos “mas isto não aconteceu mesmo”. Diremos que não existem Sereias e que ninguém se transforma em espuma por amar demasiado. Mas a Sereia, esse mito, será afinal uma imagem mental que concretiza o sentimento de desajustamento e inacessibilidade que algumas pessoas em alguns momentos das suas vidas experimentam. E a espuma… Enfim, não acabaremos todos por desfazer os corpos em pó, ar, rocha… acabaremos dissolvidos na espuma, com certeza. O que é a verdade?
Ou antes, que caminhos percorremos até ela?
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Nada há de tão grande como as palavras. Nada há de tão pequeno como elas. Com palavras se mata. De palavras se vive. Palavras curam. Palavras ferem. Pequenas, são insidiosas e virais. Enormes, são aviões e microscópios. Carregam-nos dentro como se fôssemos ar e elas os balões. Para sermos ar, precisamos de estar vivos. O pó pesa demais. Vivamos, então.
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Isabel Fernandes Pinto, 25-27/07/2022
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